segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Pela vida que acontece

Exercer a liberdade não é fazer o que se quer, quando se quer, como se quer de forma impensada. É antes disso (e acima disso), deliberar atitudes por meio de decisões conscientes. É dessa forma que ela se torna nossa condição para existir, pois, nos impulsiona a agir. Quando ela nos é expurgada, paralisamos no determinismo, ou seja, “agimos” por intermédio do que nos ditam os outros. É assim que funciona um Estado antidemocrático. É nesse Estado que deixamos de existir como seres individuais, dotados de capacidade de tomar decisões sobre nossa própria vida.

Dessa forma, dizer o que fazer, quando fazer, e como fazer (ou o NÃO fazer), sem considerar os contextos e os sujeitos sociais, é, no mínimo, agir de má fé. E é essa a atitude tomada pelo Estado que nos representa. Há 17 anos surgiu o Projeto de Lei 1135 pela descriminalização do aborto. Em 1991, o Brasil passava por um período de retomada da democracia, e o tema parecia complexo demais para ser discutido dentro de um Congresso que se reestruturava, e por uma sociedade ainda despreparada. Mas em 2008, o tema é revivido após anos de espera e expectativa de quem lutou a vida inteira por justiça, ou seja, pela legalização do aborto. E de luto, milhões de mulheres receberam a notícia de sua revogação.

O arsenal legal no Brasil é embasado na lógica conservadora e patriarcal, em que às mulheres é designada a função social de reprodução, cuidado com os filhos e vivência no ambiente doméstico. Fortalecendo esse quadro de moral ultrapassada, a Igreja tenta se apossar do corpo feminino regulando sua reprodução por meio da condenação do uso de contraceptivos e da prática do aborto. E quando esses dois “poderes” se aliam contra a liberdade feminina, o resultado é o desrespeito pelo princípio de laicicidade do Estado, que não pode legislar segundo princípios religiosos.

A desigualdade entre homens e mulheres, baseada na divisão do papel social, torna a criminalização em razão do gênero. Muitas mulheres não conseguem negociar o sexo, pois, o parceiro, se acha no direito de decidir quando usar a camisinha (como qualquer outro contraceptivo, ele pode falhar), ou tratam o sexo como uma obrigação do casamento, forçando a mulher de suas “obrigações de esposa”. Em decorrência, a gravidez indesejada. Mas a criminalização do aborto, não os atinge.

A divisão de classe também representa mais um componente do quadro de agressões à liberdade da mulher. Os efeitos da criminalização atingem com mais intensidade a mulher em desvantagem social, ou seja, pobre e negra, por não ter como pagar um serviço de saúde de qualidade. O aborto clandestino ocorre aos milhares todos os anos, aumentando, como conseqüência, o risco de vida e de saúde para as mulheres, sendo o risco ainda maior, quando a situação é de pobreza. Além disso, quando uma mulher chega ao serviço público de saúde após um abortamento, é alvo de desrespeito, sofrendo humilhações e nenhuma orientação para os riscos de uma futura gravidez.

O aborto corresponde um dos mais graves problemas de saúde pública nos países onde é criminalizada. O aborto inseguro provoca danos físicos como a infertilidade, muitas vezes acompanhada de um útero perfurado - isso ocorre, quando o aborto é feito sem nenhuma ajuda ou em clínicas sem recursos. Problemas psicológicos também são muito comuns. Por serem discriminadas nos serviços de saúde e pela sociedade, o isolamento social e a culpa moral por ter praticado um ato clandestino, tornam-se os mais graves problemas para a vida social da mulher. A clandestinidade do aborto, além de tudo, é uma das maiores causas de mortes de mulheres no Brasil.

Assim como a liberdade não pode ser confundida como uma expressão da vontade desmedida, o aborto não pode ser confundido com um ato irresponsável, sem limites. Quem defende a legalização do aborto, levanta a bandeira por um aborto responsável, impondo restrições para que esse ato não agrida a saúde da mulher. Para que o aborto seja seguro, além de ser legalizado, ele deve ser feito com até 12 semanas de gestação, ou até vinte, em caso de má formação fetal ou riso de vida para a mulher.

Um comentário:

Tarcisio Oliveira disse...

ótimo texto.
contudo vale resaltar que uma das prerrogativas do estado e do direito é a preservação da vida, em qualquer instância.
mas, cada caso é um caso!